O Cultivo de novas relações humanas como fruto da vida nos assentamentos

A 14ª Jornada de Agroecologia do Paraná colocou em evidência não apenas um modelo alternativo de produção, mas o fortalecimento da cultura e da relação entre arte e política no campo

Por Camilla Hoshino

A grande plenária foi o cartão de visitas da 14ª Jornada de Agroecologia do Paraná. A alguns passos de distância, mais de 40 barraquinhas de produtos orgânicos e agroecológicos atraem a atenção da multidão dispersa durante os intervalos da programação.

Atrás da feira, o cheiro de carne temperada e mandioca cozida nos leva até a cozinha comunitária, divida em brigadas com cerca de cinco pessoas cada, para a produção de três refeições diárias para os participantes. Tudo foi pensando e construído com cuidado para garantir o funcionamento de um evento de quatro dias com mais de 4 mil pessoas, vindas de diferentes regiões do estado e do país.

Foto: Danielson Postinguer
Foto: Danielson Postinguer

Muitas cores e enfeites compuseram o palco principal: panos de chita, cabaças, peneiras artesanais, frutas e sementes crioulas. É neste espaço que aconteceram as mesas temáticas, os atos políticos e as apresentações artísticas. Mais do que isso, ali se misturou arte e política, sem “foices, martelos, punhos cerrados ou sangue escorrendo”, brincou Sylviane Guilherme, dançarina e integrante do Setor de Cultura do MST/PR.

Ela explica que os objetos do cotidiano dos agricultores e agricultoras, para além de sua função utilitária no dia a dia, se tornam arte quando ganham uma expressão livre naquele palco. “A ornamentação não é apenas decorativa, ela diz o que é a agroecologia, o trabalho e a vida no campo”, reforça.

Protagonismo

As características do modo de vida e da cultura nos assentamentos rurais puderam ser encontradas em todos os espaços da Jornada. Seja na marcha de abertura, nas palestras e oficinas, nas cirandas voltadas para as crianças, na cozinha ou nas noites regadas de forró e moda de viola. “A agroecologia não é só um projeto de produção de alimentos diferenciado do agronegócio, é um modo de vida”, afirma Sylviane.

A dançarina conta que a forma como as pessoas se relacionam em torno desta produção, nas famílias, no jeito de tratar a terra, de se conectar com a lua ou com seu vizinho de lote e nas escolas, reflete na maneira como elas enxergam o mundo e se expressam.

Ronaldo Pituimm é educador popular e palhaço na Cia Nove de Curitiba. Durante a Jornada, se dedicou à realização de um espetáculo de palhaços na Ciranda Infantil, espaço pedagógico diário destinado às crianças, para possibilitar a participação de seus pais e mães nas demais atividades de formação.

Foto: Isabella Lanave
Foto: Isabella Lanave

Para ele, o mais importante é poder proporcionar aos espectadores o estado puro do riso, sem discriminação ou preconceito. “Diferente de outros espaços em que nos apresentamos na cidade, aqui os sem terrinha interagem e se tornam protagonistas da brincadeira. Isso vem da forma como são criados nos assentamentos”, diz.

Para Sylviane, esse protagonismo, desde criança, é um aspecto importante que o fortalecimento da cultura proporciona ao Movimento Sem Terra. “A cultura tem uma dimensão ampla, que contempla a filosofia, a educação, os valores e também a arte. E é importante esclarecer o que é a cultura camponesa para entender o que ela tem de relevante para a nossa luta, não apenas por reforma agrária, mas por outro projeto de sociedade”.

Arte e revolução

De volta ao palco, o grupo Encantados Trupe Agroecológica fizeram a música ecoar de forma particular. Entre os versos cantados, vozes declamaram poesias, enquanto seus integrantes interagiram com a plateia. Eles se vestiram com chapéus, aventais, botas e adereços comuns aos trabalhadores e trabalhadoras do campo.

“A proposta é utilizar diversas linguagens para discutir os temas e assuntos apresentados na Jornada e fazer com que os momentos artísticos não sejam apenas um instrumento de animação, mas espaços tão importantes quanto os demais”, afirmou Graçinha Donato, de Marabá (PA). A atriz e integrante do Setor de Cultura do MST fala do papel da arte para os movimentos sociais e para a classe trabalhadora.

Foto: Juliana Adriano
Foto: Juliana Adriano

“Ter acesso e fazer arte com qualidade é um direito de todos nós. Não é porque somos camponesas e trabalhadores quase sem estudo que a gente não deve acessar as produções que são da burguesia. Por que também não podemos fazer arte bacana, com cunho político, que provoque as pessoas?”, questionou.

Experimentação, arte, política e encantamento. Com estas palavras, o cantor e violeiro Lucas Nogueira Carvalho, do Paraná, resume o trabalho do grupo Encantados Trupe Agroecológica. “A mensagem que queremos passar é que existe um encantamento necessário para a vida no campo, que é capaz de satisfazer a inteligência e o senso critico das pessoas. Queremos discutir a agroecologia e o programa do Movimento Sem Terra a partir deste encantamento”, afirmou.

Além dos “Encantados”, como foram chamados no evento, a programação da jornada também contou com forró de rabeca, fandango caiçara, música caipira e outros ritmos, produzidos por convidados e por grupos de músicos do MST, todos ligados à luta pela terra e à cultura popular.

Foto: Leandro Taques
Foto: Leandro Taques

Segundo Sylviane Guilherme, a proposta do fortalecimento da cultura e da arte para os trabalhadores e trabalhadoras sem terra faz parte da tentativa de “tirar o atraso da classe trabalhadora, historicamente desumanizada pelo sistema capitalista”. Além do esforço alavancado pelas Jornadas de Agroecologia, ela cita o Festival de Artes das Escolas de Assentamento do MST, produzido a cada dois anos na cidade de Curitiba.

O evento reúne escolas do campo de várias regiões do sul do país, principalmente do Paraná, e exibe as produções artísticas e culturais desenvolvidas por crianças e jovens nos assentamentos. O Teatro Guaíra, no centro de Curitiba, é um dos locais em que se apresentam. “Queremos tornar todo esse espaço poético, colorido, vivo, belo, para trazer à tona essa necessidade de humanização. Pessoas humanizadas não se submetem com tanta facilidade. E essa é a nossa perspectiva revolucionária maior”.

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