O que é Agroecologia?

Por Gustavo Steinmetz Soares, Coletivo de Estudos sobre Conflitos pelo Território e pela Terra (Enconttra/UFPR)

Mas afinal, o que é agroecologia? Agroecologia é um modo de produção que busca trabalhar em harmonia com a natureza, onde o conceito de soberania alimentar é fundamental. Mas a prática da Agroecologia, em toda sua expressão, vai para além de um projeto de produção. 

Quais são então as diversas Agroecologias que encontramos? São múltiplas as dimensões que a constroem como movimento, prática, ciência, ancestralidade, luta social, modo de vida, e por aí vai. Assim, usar o plural Agroecologias, talvez seja um termo mais condizente com a sociobiodiversidade que está em sua essência. 

Agroecologia, ancestralidade e conhecimento tradicional

Pela relação profunda com a natureza, a essência da Agroecologia está na prática dos povos ancestrais. Por exemplo, a agricultura indígena Kayapó se inicia com a clareira na floresta, onde são plantadas sementes de diversas espécies que garantem a diversidade e a longevidade da produção de alimentos. Enquanto o auge da produção se mantém durante 2 ou 3 anos, outras espécies continuam sendo colhidas por mais tempo, como a batata-doce, 4 a 5 anos, o inhame e o cará, 5 a 6 anos, a mandioca, 4 a 6 anos, o mamão, 5 ou mais, variedades de banana, 15 a 20 anos, urucum, 25 anos, e o cupá, 40 anos. A agricultura indígena Kayapó também se caracteriza pelo movimento em um território vasto, com revisita aos plantios, que abrangem diversas funções, de alimento, instrumento, uso medicinal e integração social. Além disso, os plantios “velhos” atraem a caça, caracterizando uma pecuária integrada.

A agricultura cabocla, desenvolvida a partir da agricultura indígena, se forma pela ideia de retirar na natureza tudo que é preciso do seu entorno, de maneira equilibrada. Nesse ambiente, a floresta está em pleno funcionamento, onde umidade, diversidade, fertilidade e biomas aumentam. Já a agricultura convencional vai no sentido inverso e necessita de uma “UTI” no campo. Ou seja, requer  uma série de equipamentos (maquinário e tecnologia) e suplementos (insumos químicos, fertilizantes, agrotóxicos) para que se mantenha funcionando. Assim, a Agroecologia como ancestralidade enfrenta uma disputa diante do seu apagamento pela monocultura convencional, e resiste nas práticas e relações com a natureza, de camponeses e camponesas, que muitas vezes vem da família, das gerações anteriores.


fotografia colorida com uma criança em primeiro plano e atrás delas toneladas de alimentos orgânicos e agroecológicos
Foto: Wellington Lenon/ Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho – MST
fotografia colorida em que diversas mãos adultas e infantis seguram uma muda de árvore que será plantada
Foto: Gabriel Bicho

Agroecologia e ciência

A agroecologia como ciência busca o domínio dos conhecimentos para chegar a uma produção limpa, tendo como foco a produção e a dimensão econômica, sem considerar verdadeiramente as dimensões sociais e culturais. Porém, ainda assim, já propõem uma mudança de paradigma em relação à agricultura convencional.

Os princípios de agroecologia devem ser aplicados a partir da realidade específica da área onde se propõe a produção de alimentos limpos, para atender aos interesses da humanidade e não dos grupos econômico-financeiros. A agroecologia produz tecnologias limpas para qualquer escala de produção, com a substituição das monoculturas por rotação de culturas, proteção dos biomas com reservas na unidade de produção, sucessão animal-vegetal, o não uso do arado de grade (não se move o solo), a fertilização sem composição sintética (agrotóxicos) e diminuição dos parasitas e doenças. 

Assim, a ciência da agroecologia desmistifica os discursos que fazem suas práticas, as ancestrais e atuais, serem apagadas historicamente. O discurso dominante do agronegócio diz que a Agroecologia é “mais cara”. Na verdade é o contrário, ao trabalhar os recursos ecossistêmicos presentes no local, fortalecendo as relações e a saúde das plantas, diminui-se drasticamente a dependência de agrotóxicos que vem de fora. Ao maximizar a captação solar a partir do trabalho com diversas espécies que ocupam estratos diferentes do espaço, aumenta-se a captação da energia solar. Isso favorece a produção de nutrientes por meio da fotossíntese e diminui os custos da produção. 

Outra coisa que dizem é que, com a adoção da agroecologia, pretende-se voltar à caverna, com a produção na enxada. Não é verdade. As pessoas trabalhadoras do campo precisam e querem utilizar a ciência, a mecanização e a tecnologia, mas a seu favor, sem agredir a natureza. Com a tecnologia, buscam agregar e aumentar a qualidade de vida, favorecendo a própria permanência e continuidade no campo. E que a Agroecologia é menos produtiva, sendo que já se verificou que a produtividade agroecológica é 6% a 10% maior (Pat Mooney, 2006).

fotografia colorida mostra uma turma de formandos usando beca e com diploma na mão comemora a conquista da formação
Formatura de 44 jovens camponeses, oriundos de dez estados, no Curso Superior de Agronomia (UFFS) com ênfase em Agroecologia. Foto: Leandro Molina.
fotografia colorida revela uma sala de aula com muitas alunas e alunos e alguém falando a frente. ao fundo, há uma bandeira da via campesina
Aulas na Escola Latino Americana de Agroecologia. Foto: Wellington Lenon

Agroecologia e Permacultura

Os estudos sobre agroecologia buscam, para além da academia, o impacto das práticas tradicionais e inovadoras na geração de alternativas. Nesse sentido, a permacultura se desenvolveu em paralelo com a Agroecologia. Ambas têm muitas coisas em comum e partem de uma visão ecossistêmica que trabalha com os recursos locais, onde cada espaço tem função de auxiliar nos objetivos de produção. Esses espaços a permacultura chama de Zonas Permaculturais, que são classificadas de acordo com a proximidade e a intensidade de trabalho nas mesmas, pensando que dentro do sistema vai existir troca de energia que beneficia cada atividade. Da mesma forma, na agroecologia, os canteiros são planejados para melhor aproveitar os recursos da área, a proximidade com fontes de água e as vias de circulação, bem como aproveitar a melhor posição em relação ao sol e a proteção contra ventos fortes, de acordo com cada local. 

Assim, a contribuição da permacultura na transição agroecológica se dá como um sistema que imita padrões e relações encontradas na natureza, como forma de colaboração entre diversos sujeitos, como uma literatura de ecologia aplicada de simples tradução, como direções de pesquisa sobre agroecossistemas e como movimento internacional que opera além das instituições, promovendo espaço para ações-pesquisas participativas e mobilização popular. A permacultura surge nos anos 1970 com Bill Mollison e David Holmgren, com grande influência da agricultura permanente, com a introdução de árvores no manejo, para estabilização do solo em encostas, produção de forragem e alimentação complementar.

Do ponto de vista do uso e manejo da terra, considera sistemas terrestres e aquáticos, produção animal e vegetal, anual e perene, pensando na diversidade de produtos, com a relação entre vários projetos tende a minimizar a necessidade de trabalho. Envolve a relação sociedade-natureza, enxergando o ser humano como gerenciador de ecossistemas, dentro de um planejamento integrado, promovendo a ideia de que é possível gerar ganhos e rendimento ao mesmo tempo que se melhora a saúde do ecossistema.


fotografia colorida mostra um sistema de permacultura
Lavouras agroecológicas coletivas do assentamento Contestado. Foto: Wellington Lenon

Agroecologia e as mulheres

Historicamente, como ciência, a Agroecologia é construída em grande parte por homens brancos europeus, que estão fora do campo. Ela ganha outros sentidos a partir de sua (re)apropriacão por movimentos sociais. A perspectiva feminista, que nasce nos movimentos, amplia e aprofunda seu olhar, mostrando que não basta substituir as técnicas, mas enfrentar as contradições sociais da sociedade, onde trabalhar com todas as dimensões juntas é preciso, como garantir a participação das mulheres e a inclusão dos jovens, e onde a comida farta na mesa é um dos sinais de sucesso, tanto na mesa das camponesas e camponeses quanto de quem está na cidade.

O feminismo e a agroecologia apontam para o conhecimento agroecológico das mulheres a partir  de relações de solidariedade ou interdependência voluntária, na reprodução dos recursos necessários para a vida. O esforço da agroecologia feminista é promover uma concepção mais ampla e circular do sistema econômico e das condições de reprodução da vida, resultando em mudanças nos espaços em que a voz da mulher é despercebida, onde há desigualdade na divisão do trabalho, imposição estética, e desamparo de equipamentos públicos, como creches e escolas. 

Historicamente as mulheres foram se organizando e ganhando espaço nos movimentos sociais e articulando grupos dentro de associações voltados às questões de gênero. Essa articulação avançou e conquistou  voz em espaços de decisão nos governos progressistas, propondo a valorização do trabalho com agroecologia e das relações de gênero, gerando o protagonismo das mulheres no campo, pois sem feminismo não há Agroecologia. 

O protagonismo das mulheres na luta pela terra, desde a Agroecologia, põe em pauta outros olhares, como as dimensões do cuidado e do cotidiano enquanto práticas centrais, ou seja, além do olhar para fora da produção, o olhar para dentro, para as relações que se constroem no dia a dia da lida. Para além do produzir, Agroecologia para alimentar, curar, compartilhar, resistir, aproximar, emancipar, subverter, dialogar, educar, proteger, cuidar, crer, conviver, comer e aprender.

Agricultoras e agricultores da Agroecologia são cientistas populares, na construção de um entendimento profundo da natureza. É preciso conhecer bem a terra para conseguir aproveitar o máximo possível, por exemplo, sol, ventos, chuvas, entradas e saídas de energia no sistema. 

foto colorida em que no primeiro plano está uma mulher camponesa sorrindo e segurando no ombro uma enxada. ao fundo, aparece a horta cultivada e plantações
Foto: Wellington Lenon

Agroecologia como movimento social

Agroecologia é algo vivo em constante construção e também disputa, pelas diversas perspectivas que a abraçam. Na Reforma Agrária Popular (RAP) proposta pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), a implementação de modelos produtivos e de relações sociais alternativas ao capitalismo são centrais. Tendo assim a  potencialidade na organização de comunidades camponesas em acampamentos e assentamentos da reforma agrária, propondo o manejo da terra partindo de uma visão sistêmica e relacional, onde se consideram relações sociais, culturais, identitárias, ambientais e produtivas, como um todo. 

Experiências concretas em acampamentos e assentamentos já estão desbordando a forma em que o MST propôs inicialmente a RAP, em 2014, expandindo a luta contra o capitalismo. São posturas relacionadas à produção e reprodução da vida, recuperando sentidos que o capitalismo vem apagando desde a “Revolução Verde” e construindo novas formas de ser e estar com a terra e a natureza, onde a vida está no centro, e não o lucro.

fotografia colorida em que aparece em destaque a bandeira do mst envolta em alimentos e sementes crioulas
Partilha de sementes da 17a Jornada. Foto: Giorgia Prates

Alimento agroecológico e alimento orgânico

O alimento agroecológico então aparece como síntese concreta que articula as muitas dimensões da Agroecologia (produção, solidariedade, saúde, luta contra agrotóxicos e transgênicos, ancestralidade, cozinha, cuidados, verbos, festa/bailão, comunidade…). E assim é que se diferencia do alimento orgânico, aquele que mais encontramos nas prateleiras de mercados. Ou seja, um alimento orgânico não é necessariamente agroecológico, mas o caminho inverso pode ser verdade. Alimentos orgânicos podem ser produzidos de forma agroecológica de forma que vão trazer em si todas as características e muitas outras tratadas nesse texto. 

A agricultura orgânica expõe o risco da sustentabilidade do seu contexto enquanto privilegia fatores econômicos, desconsiderando questões ecológicas e sociais, bem como o princípio agroecológico de equilíbrio. Já a Agroecologia busca, na difusão das práticas e troca de saberes, a soberania alimentar que sustenta o direito dos povos definirem suas estratégias de produção e consumo e a equidade de gênero que se baseia no reconhecimento do papel relevante que as mulheres têm exercido nos sistemas de produção agroecológica. Outra grande diferença, é que a produção orgânica pode trabalhar com monoculturas de larga escala, ignorando os princípios de biodiversidade da Agroecologia, ou seja, grandes produções que acabam esgotando o meio ecológico e necessitando cada vez mais de insumos agrícolas.

fotografia colorida mostra uma cesta de alimento orgânicos e agroecológicos com hortaliças e milho verde
Cesta de alimentos agroecológicos na 18ª edição da Jornada de Agroecologia no Paraná. Fotos: Wellington Lenon

Agroecologia e ações de solidariedade

Talvez um alimento que tenha materializado toda a diversidade de significados que a Agroecologia traz foi aquele que fez parte das ações de doação e solidariedade durante a pandemia. Alimentos saudáveis chegaram  aos mais necessitados e impactados durante a pandemia. Unindo o campo e a cidade na luta pela sobrevivência diante dos agravos da pandemia, acampamentos, assentamentos, hortas comunitárias, movimentos e associações se uniram e dedicaram grande parte de seus esforços para materializar essas ações. 

Ou seja, o alimento agroecológico alimenta não só a barriga, mas a vida e as relações sociais, com laços de solidariedade e não só de consumo. É a aproximação de quem produz com quem consome, é a conscientização de uma escolha por um alimento que favorece aquelas e aqueles que desejam uma relação saudável com o meio ambiente e uma sociedade mais justa. O que é agroecologia? É o alimento que prioriza a vida, e não o lucro.

fotografia colorida mostra dois homens segurando uma sacola de alimentos provavelmente um entregando a comida ao outro
Foto: Jaine Amorin/MST


fotografia colorida mostra um caminhão estacionado e dele as pessoas descarregam cestas de alimentos para doação. no caminhão, há uma faixa com o símbolo do MST
Doação em Cascavel. Foto: Diangela Menegazzi
fotografia colorida mostra uma galpão pré-moldado onde estão dispostas centenas de caixas e sacolas com alimentos para doação
Doações de alimentos no Paraná. Foto: Arquivo MST-PR

Edição: Diangela Menegazzi

Referências

Antonielle Pinheiro Da Cunha. Diálogos Entre Geografia e Agroecologia: Reflexões Sobre Território, Desenvolvimento e Colonialidade. Terra Livre São Paulo, 2017, Ano 29, Vol.2, n 43 p. 170-205.

Chaves, Hadnen Issa Jabur. Produção agroecológica e viabilidade econômica para pequenos produtores. Anápolis, Centro Universitário de Anápolis, UniEVANGÉLICA, 2018, 40 p.

CUNHA, A. P. da. Diálogos Entre Geografia e Agroecologia: Reflexões Sobre Território, Desenvolvimento e Colonialidade. Terra Livre São Paulo, 2017, Ano 29, Vol.2, n 43 p. 170-205. 

Ferguson, Rafter Sass; Lovell, Sarah Taylor. Permaculture for agroecology: design, movement, practice, and worldview. A review. Agron. Sustain. Dez. (2014), n.34, p.251-274.

HILLENKAMP, Isabelle; NOBRE, Mirian. Agroecologia e feminismo no Vale do Ribeira:

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em ciências. Campinas, SP : UNICAMP/IFCH, 1993 – v.26, n.52, 2018 p. 167-194.

MACHADO, L. C. P; FILHO, L. C. P. M. A Dialética da Agroecologia: Contribuição para um mundo com alimentos sem veneno. Expressão popular, São Paulo, SP, 2014, 360 p.

MONNERAT, P. F. Mulheres camponesas e agroecologia no MST do Paraná: os

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PEREIRA, I. B. F; MONTENEGRO, J; ANDREOLI, M. C; ALCANTARA, R. K. Conflitos na Reforma Agrária e mundos possíveis no planejamento de um assentamento agroecológico no município de Castro-PR. 2020

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