“O afeto é tecnologia da sobrevivência”, defende Bia Ferreira na 20ª Jornada de Agroecologia

Cantora mineira se apresentou no evento em Curitiba na última sexta-feira (24)

Foto: Joka Madruga

Por Jade Azevedo

Sem papas na língua, Bia Ferreira fez um show solo que trouxe a pauta LGBTQIAPN+, o antirracismo e a violência contra pessoas do gênero feminino para o palco da Jornada de Agroecologia, na tarde de sexta-feira (24). A cantora, compositora, multi-instrumentista e artivista mineira define sua música como “MMP – Música de Mulher Preta”. 

No show, Bia Ferreira abre suas músicas com poesias de luta. Numa delas, defende que o amor é a tecnologia da resistência, que a arte é uma forma de se expressar, de lutar e compartilhar mensagens para gerar movimento, incentivar e encorajar mulheres, adultas, jovens, negras, periféricas, lésbicas, trans, sem terra e indígenas. Uma das músicas cantadas no início da apresentação foi “Não Precisa Ser Amélia”: 

“Não precisa ser Amélia pra ser de verdade
Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser
Seja preta, indígena, trans, nordestina
Não se nasce feminina, torna-se mulher” …

Em 2019, a artista lançou seu álbum Igreja Lesbiteriana, como é conhecida nas redes. Segundo ela, um trocadilho. Uma ferramenta linguística usada em muitas das músicas deste trabalho para falar do que defende. Em 2021, Bia tem adotado letras mais focadas em oferecer soluções para os problemas que outrora denunciava. Segundo ela, isto é parte de uma estratégia de “apresentar o afeto como tecnologia de sobrevivência, e a informação como chave de libertação para pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+ que sofrem qualquer tipo de opressão”.

Antes de encerrar, Bia cantou “Cota não é esmola”, música que se tornou um dos seus maiores sucesso que trouxe temáticas ligadas ao então inédito sistema de cotas no SISU (Sistema  de Seleção Unificada) e a questões estreitamente ligadas à subalternidade das mulheres negras no Brasil. A música é leitura obrigatória para os vestibulares da Universidade de Brasília (UnB), Universidade de Minas Gerais (UFMG) e do Paraná (UFPR). 

Em seu show e na conversa depois no camarim, Bia contou que muito do seu processo criativo vem do conceito de “escrevivência”, da escritora mineira Conceição Evaristo (escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida da autora e do seu povo).

Confira a entrevista:

Jornada de Agroecologia: Várias de suas músicas são referência para a juventude negra e para a juventude LGBTQIA+. A que você atribui isso?

Bia Ferreira: Eu acho que a dona Conceição Evaristo embasa muito do que eu faço, ela e a dona Sueli Carneiro são pessoas que me constroem intelectualmente e como eu vejo o mundo. A dona Conceição traz o conceito de “escrevivência”, que é de onde eu baseio meu trabalho. É sobre falar coisas onde eu me sentiria representada quando era mais nova. Eu busco trazer de uma forma mais lúdica e mais simples informações que são codificadas na Academia. 

Foto: Juliana Barbosa

Temos um desafio coletivo de denunciar as contradições e os problemas estruturais da sociedade e ao mesmo tempo anunciar alternativas a isso e o bem viver. E vemos que você encara esse desafio no seu trabalho. Como você concebe isso?

Quando a gente vem falar sobre bem viver é o maior ato de desobediência civil que a gente consegue fazer no país que mais mata essa população [negra] no mundo; no país que a cada 23 minutos mata um jovem negro, no país que é o país que mais mata população LGBTQIA+ no mundo.

Eu acho que a gente precisa falar sobre bem viver, falar sobre tecnologias de sobrevivência. Como é que a gente se mantém vivo? Porque a gente se mantendo vivo até agora. A nossa história é contada pela oralidade. Então a partir dessa oralidade vamos criar tecnologias de informação para que a gente se mantenha vivo e eu eu acho que esse é o foco do meu trabalho: é compor e propor arte a partir da minha vivência. A partir de coisas que me atravessam, porque eu entendo que eu não sou um ser só no mundo, tem muita gente que é atravessada pelas mesmas coisas que eu, muita gente que não vive o que eu vivo, mas que conhece alguém que vive e que precisa se inteirar a respeito do que está acontecendo.

Eu falei isso no palco e reitero aqui: eu acho que a educação só muda a partir da mudança da cultura. Eu acho que não adianta você ficar falando para a criança, para o menino: “não bate na menina, não bate na menina”, se ele chega em casa e a cultura de agressão é o que ele vive o tempo todo. Aquilo ali que ele tá vendo, que ele tá ouvindo, molda muito mais do que qualquer outra teoria que possa ser apresentada a ele. Então, a arte, a cultura têm que ser mudadas. 

A gente, a partir dessas narrativas, consegue propor um novo parâmetro de visão para como a gente quer construir essa sociedade. Eu acho que pode soar utópico para algumas pessoas, mas eu acho que é muito real, é muito palpável: a gente se olha e a gente se enxerga viva aqui e isso faz com que a gente esteja bem. Isso faz com que eu me sinta fortalecida, de saber que você vivo, de saber que eu viva, de saber que a gente consegue, apesar de tudo, estar pisando o pé no chão e fazendo revolução. Que mais gente veja a gente fazendo essa revolução e queira construir essa revolução com a gente.

Não é fácil viver o que a gente prega. Eu acho que várias portas se fecham porque a gente tenta viver aquilo que a gente está pregando. Mas poder saber que a arte tem atravessado o coração de outras pessoas para mudança, e uma mudança para melhor, é o que faz valer o trabalho que a gente faz. Prêmio nenhum que a gente possa receber paga isso que a gente vê de transformação de vidas através da arte, através do intelectual, através do afeto.

Como é para você estar na Jornada de Agroecologia, que é esse espaço que discute um outro modelo de sociedade?

Para mim é muito importante, principalmente porque eu sou da roça. Eu vim da roça, eu nasci na roça. Fui criada na periferia da zona rural do interior de Minas Gerais, então minha convivência é rural. Eu fomento e me sinto fomentada pelo MST — e acho que é uma troca mesmo, eu já toquei em várias feiras do movimento. Eu sempre presente nesse espaço porque é um espaço que me alimenta também. Quando a gente consegue fazer essa troca é quando eu consigo falar com a galera que vem lá de onde eu vim também, e que talvez não teve acesso às mesmas informações que eu tive. 

Foto: Juliana Barbosa

Entendo também que o conservadorismo imposto na vida rural é muito grande. Trazer uma mensagem politizada para um espaço como esse é tentar abrir também a mente dos nossos que lutam pelo nosso lado, mas que também não tiveram acesso às mesmas informações que nós, e reproduzem várias coisas conservadoras, nesse sentido. 

O diálogo direto com o seu público é muito importante para você…

A galera fala muito sobre a gente só falar para quem já concorda com a gente. Mas não é porque a gente concorda em determinados assuntos que a gente concorda em tudo. E eu acho que esse debate tem que ser feito, sim, no nosso meio. Acho que trazer esse debate para um espaço onde pessoas já estão tendenciosas a nos ouvir — porque são pessoas que já lutam conosco — faz com que a gente, enquanto grupo social de revolução, consiga estudar e entender a demanda do outro, que não é minha realidade, mas que é importante que a gente entenda pra uma luta coletiva.

Para mim é extremamente importante ver como as pessoas recebem também essa arte. Porque a galera poderia só fechar a cara e falar “não concordo”, mas eu olhei ali do lado vários senhorzinhos mais de idade na lateral do palco sorrindo e ouvindo o que a gente tinha pra dizer. Essa revolução é a revolução que eu acredito: através desse afeto, dessa troca entre nós, de tecnologia de sobrevivência. Se cada pessoa que estava ali ouvindo saiu aqui um pouquinho mais animada pra fazer essa revolução, quer dizer que ela foi feita, né? 

Em 2024 o MST comemora 40 anos e para celebrar essa data o movimento está  organizando um festival literário chamado “Escrevivências Sem Terra”. A proposta é que estudantes das escolas do campo e escolas itinerantes participem com o envio de obras de autoria própria. Que recado você enviaria para a juventude para enviarem suas histórias?

A dona Conceição Evaristo tem uma frase que diz que “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”. É uma das minhas frases favoritas. Todas as vezes que a gente se propõe a ser protagonista da nossa história, a contar a partir de nós a narrativa do que nos atravessa, é quando a gente tira do outro o poder de inventar qualquer coisa a nosso respeito — é quando você tira do opressor a narrativa de atravessamento. A gente é acostumado com a oralidade pois teve todos nossos documentos apagados, quando chegaram os navios negreiros queimaram todos os documentos para que a gente esquecesse quem nós somos, esquecesse de onde nós viemos. Todas as vezes que a gente se propõe a escrever e registrar que a gente pisou aqui, é um ato revolucionário. É um ato de construção de afrofuturo, que é você poder pensar corpos como os nossos presentes num futuro próximo, vivos, para além das estatísticas de morte a cada 23 minutos. Então quando a gente escreve, é quando a gente consegue inspirar quem as vezes nem vai conhecer a gente, mas vai saber como a gente tava vivendo, vai saber o que nos atravessou.

Eu tenho uma poesia que eu gostaria de falar, que eu gosto muito, que é:

Nós não estamos sós
Ouça a nossa voz
Que faz qualquer coração bater veloz
Junte-se a nós
Una sua voz
O povo unido sempre vai vencer

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