Construindo um Projeto Popular e Soberano para a Agricultura Familiar e Camponesa
Nós, 6.000 participantes do 4º Encontro da Jornada de Agroecologia, reunidos em Cascavel – Paraná – Brasil reafirmamos nosso compromisso com a Agroecologia, continuando nossa luta por uma Terra Livre de Transgênicos e sem Agrotóxicos e conquistando a implementação de um Projeto Popular Soberano para a Agricultura Camponesa e Familiar, fundamentado na Agroecologia.
A Jornada de Agroecologia é um espaço de expressão de vários movimentos sociais da agricultura familiar e camponesa, organizações da sociedade civil, técnicos e acadêmicos e se insere no grande movimento de lutas dos povos contra a mercantilização da vida, comprometendo-se a construir uma nova sociedade capaz de satisfazer suas necessidades atuais e garantir as necessidades das gerações futuras.
A Terra, a Água, as Sementes e toda a Biodiversidade se constituíram historicamente como patrimônio comum dos povos. Interagindo com a natureza e desafiada pela sobrevivência, a humanidade forjou seu próprio conhecimento sobre as espécies agrícolas, animais e florestais, gerando ampla e diversificada oferta de alimentos e outros gêneros indispensáveis à sua perpetuação.
A instituição da propriedade da terra pelo capitalismo, iniciou o processo de apropriação privada da natureza, sua contínua degradação, a escravidão e exploração dos povos, rompendo os milênios de convivência equilibrada das populações com seu ambiente.
A partir do século XX, a intensificação deste sistema perverso se manifestou na agricultura com a introdução e difusão global do uso de agrotóxicos, fertilizantes químicos, sementes híbridas e máquinas, com o objetivo de atender aos interesses e necessidades do complexo agroindustrial monopolizado pelas grandes empresas transacionais.
Em seu estágio atual, a estratégia do Imperialismo, sob hegemonia do capital especulativo e dos Estados Unidos da América, caracteriza-se pela necessidade de domínio e mercantilização de todas as dimensões da vida. Este movimento se manifesta de maneira concreta através dos Estados militarizados, promotores das guerras e da apropriação pelas transnacionais de todas as reservas naturais estratégicas e do controle dos alimentos e da biodiversidade. Entre suas nefastas conseqüências destaca-se a crescente exclusão social de amplas parcelas da humanidade, em uma lógica associada à violação dos direitos dos pobres, à privatização da vida e à acumulação da riqueza, e à contínua degradação ambiental transferindo os malefícios para a sociedade. Ao eximir-se dos custos sociais e ambientais, o capitalismo conduz a humanidade à sua autodestruição, revelando sua incompatibilidade econômica com a dimensão ecológica e social.
No Brasil, esta estratégia é implementada pelo agronegócio exportador submisso às transnacionais que controlam as tecnologias agropecuárias, como as sementes transgênicas, o comércio e o transporte desses produtos no mercado global ao mesmo tempo em que desnacionalizam a economia, concentram renda e terra, geram aumento da violência contra trabalhadores rurais e destroem o meio ambiente.
A mídia de uma forma geral, articulada com o grande capital, tenta construir uma imagem de eficiência do agronegócio, encobrindo a insustentabilidade social, ambiental, econômica e cultural da agricultura convencional, resultante do latifúndio e da lógica de produção em grande escala, para o equilíbrio da balança comercial brasileira.
A agricultura convencional perde a cada ano, 20 toneladas de solo por hectare cultivado. Para cada quilograma de soja produzida, são perdidos 10 quilos de solo, que vão para os rios, assoriando-os e contaminando-os com agrotóxicos, eliminando a fauna e flora e envenenando a água que é o bem mais precioso da humanidade. Cada centímetro de solo perdido demora mais de 300 anos para ser formado.
As propriedades acima de 200 hectares representam apenas 5,3 % dos estabelecimentos agrícolas, mas ocupam 70,8 % da área agrícola do país e empregam somente 12,7 % da mão-de-obra do meio rural, o que demonstra a sua insustentabilidade social. Na década de 90, o latifúndio do agronegócio desempregou mais de 13 % dos trabalhadores do meio rural, enquanto, apesar da crise, o conjunto da economia gerou um crescimento de 1 % de novos postos de trabalho.
O valor bruto da produção agropecuária gerado pelo agronegócio brasileiro é de apenas R$ 224,86/ha/ano, demonstrando a sua insustentabilidade econômica. O agronegócio tem usado dados da agricultura familiar, especialmente das grandes cooperativas, que tem em torno de 80 % de sua produção oriunda da agricultura familiar, para mascarar a verdade de sua ineficiência.
O aumento da produção de grãos e de carnes do Brasil, nos últimos anos, tem sido sustentado pela expansão da fronteira agrícola à custa da grilagem de terras públicas, da violência, do trabalho escravo e da destruição de ecossistemas e biomas importantes como o cerrado e a mata Atlântica e atualmente a produção de soja tem feito grande pressão sobre a floresta amazônica e especialmente sobre agricultores familiares e povos da floresta que trabalham com pequenas áreas.
Em contrapartida a agricultura familiar e camponesa é responsável por 67 % da produção de feijão, 59 % da produção de suínos, 52 % da produção de leite e 49 % da produção de milho.
Os estabelecimentos agrícolas menores que 100 ha são responsáveis por 75 % das receitas geradas pela agricultura brasileira, demonstrando a importância de termos políticas públicas que incentivem a agricultura familiar e camponesa e realizem uma ampla reforma agrária.
Dados do IBGE mostram que os estabelecimentos que possuem áreas menores que 200 ha representam 93,8 % dos estabelecimentos agrícolas e detém apenas 29 % das terras do Brasil, mas, ao contrário, o latifúndio do agronegócio, emprega 87,3 % da mão-de-obra do meio rural.
Outro dado alarmante é que todo ano deixam de existir noventa mil estabelecimentos agrícolas, que são incorporados pelo grande latifúndio.
Rompendo com esta lógica, por todo o planeta os povos se levantam anunciando que é possível construir um mundo sustentável, fundado em relações de solidariedade, justiça, democracia, paz e em uma economia ecológica.
No Brasil lutamos pela construção da sustentabilidade do desenvolvimento tendo na agroecologia uma realidade viva e nas práticas dos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, sertanejos, camponeses, agricultores familiares, posseiros e sem-terras das mais diferentes etnias e culturas.
A agroecologia se caracteriza pela sua alta capacidade de preservar e reproduzir a vida e nesta perspectiva, só é possível ser construída com base nas relações de gênero e geração sendo que este princípio deve orientar as políticas públicas.
Reafirmamos nesse 4º Encontro da Jornada de Agroecologia, na cidade de Cascavel, a continuidade de nossas ações comuns, articuladas em torno de um novo jeito de viver que se expressa na proposta da agroecologia, como:
Conquistar políticas públicas que viabilizem o projeto popular e soberano de uma agricultura camponesa e familiar ecológica. Neste 4º Encontro da Jornada de Agroecologia, a partir da construção de um debate amplo com todos os participantes, destacamos como pontos prioritários para a construção de uma Política de Agroecologia:
- Tecnologia de produção agroecológica:
Desenvolvimento tecnológico em agroecologia implica em superar distinção e isolamento do ensino, pesquisa, extensão e agricultores(as), por uma abordagem sistêmica, das políticas que impliquem numa interação horizontal entre técnicos e agricultores experimentadores.
Propomos:
- Instalar um colegiado de gestão de políticas e recursos, com poder deliberativo, e participação paritária entre organizações de representação dos agricultores familiares e instituições públicas.
- Ampliar, simplificar e desburocratizar o financiamento público para implementação de serviços a serem realizados por organizações da agricultura familiar e organizações da sociedade civil.
- Fomento à experimentação; às atividades formação: dias de campo, intercâmbios, cursos, seminários, oficinas; às publicações, recursos audiovisuais e de informática.
- Reeducação dos profissionais do serviço público quanto à compreensão da abordagem sistêmica em agroecologia e em experimentação participativa.
- Criar um programa de desenvolvimento tecnológico e fomento para formas alternativas de geração de energia.
- Transgênicos:
- Realização de campanhas públicas educativas sobre os perigos dos transgênicos para a saúde, o meio ambiente, a economia e a soberania alimentar .
- Manter a proibição no Brasil do uso e manipulação da tecnologia terminator ( tecnologia de restrição da capacidade de expressão genética), levando esta posição ao convênio de diversidade biológica, que estará sendo reavaliado na COP 8 que estará acontecendo no Brasil em 2006, e a todos os outros fóruns internacionais pertinentes.
- Manter com todas as forças o Paraná como área livre de transgênicos
Exigir a rastreabilidade dos produtos transgênicos e aplicar imediatamente a lei de rotulagem dos produtos que contenham transgênicos, como medidas que impedem a contaminação genética.
IV.Suspender todo e qualquer tipo de política pública que esteja sendo utilizada para a produção de transgênicos.
V.Proibir a aquisição de transgênicos em todos os programas de abastecimento alimentar e às instituições públicas
VI. Aprovar leis municipais criando áreas livres de transgênicos
VII. Sobretaxar os produtos transgênicos
VIII.Instalação de uma CPI no Congresso Nacional e investigação pela polícia federal e ministério público do contrabando de sementes transgênicas para o Brasil.
3. Agrotóxicos:
I. Moratória de registro de agrotóxicos e revisão geral da carta de registros.
II.Proibição da propaganda de agrotóxicos e fiscalização rigorosa em relação à utilização e rotulagem adequada, informando a população sobre seus perigos e tratamentos em caso de contaminação
- Incluir nos currículos dos profissionais da área de saúde a formação sobre agrotóxicos e sobre os tratamentos dos malefícios por eles causados
- Realização de análises de monitoramento de resíduos de agrotóxicos nos alimentos pela ANVISA
- Exigir da ANDEF a formação e capacitação adequada de todos os agricultores usuários de agrotóxicos
- Intensificação da fiscalização da lei de regulamentação do tratamento e reciclagem das embalagens de agrotóxicos
- Criação de um programa especial de saúde do(a) trabalhador(a) rural
- Criação de um programa de pesquisa pública para avaliação dos efeitos dos agrotóxicos, na saúde humana e no meio ambiente, custeados por um fundo mantido pelas empresas fabricantes.
- Suspender e proibir todo tipo de subvenção às indústrias de agrotóxicos, executar as dívidas públicas das empresas fabricantes de agrotóxicos e destinar ao fundo de apoio à agroecologia de base familiar
- Revogação do artigo 39 da lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança)
- Educação no campo e culturas tradicionais e camponesas
- Suprir as necessidades das escolas de formação em agroecologia existentes com convênios com as organizações da agricultura familiar
- Criar novas escolas de formação em agroecologia em convênio com as organizações da agricultura familiar
- Incluir a agroecologia no currículo das escolas rurais e das pequenas cidades
- Reeducação para os educadores da rede pública, em agroecologia e pedagogia de formação da consciência cidadã
- Permitir o acesso amplo e democrático ao conhecimento e à informação, com a implantação de bibliotecas e acesso às formas de comunicação eletrônica
- Criar um amplo programa de estímulo ao resgate, revalorização e expressão da cultura camponesa.
- Recursos naturais:
a) Terra:
I) realizar ampla e massiva reforma agrária, respeitando as diferentes formas tradicionais de ocupação e uso sustentável da terra
II) delimitar o tamanho máximo da propriedade rural, nos moldes do que propõe a Campanha pelo Limite da Propriedade Rural.
b) Água:
I) assegurar o acesso à água a toda a população, através de serviços públicos de qualidade;
II) assegurar em lei quem a água permaneça sendo um bem público, proibindo-se a privatização dos serviços de abastecimento e saneamento.
III) Rever a legislação, para que a água seja considerada não um recurso econômico, mas um direito humano fundamental e ainda garantir a efetivação da participação e controle social na gestão da política da água
IV) investir no fortalecimento dos órgãos ambientais que fiscalizam o uso e a qualidade da água
V) criar um programa de monitoramento da qualidade da água quanto à resíduos de agrotóxicos e outras substâncias químicas
VI) desenvolver a educação para o uso sustentado da água
VII) Implementar Programas de Recuperação e Proteção dos Rios e Nascentes.
c) biodiversidade
I) apoiar as organizações da agricultura familiar para estruturar programa de resgate, conservação, multiplicação e uso sustentado da agrobiodiversidade e melhoramento genético de variedades crioulas
II) assegurar e apoiar o livre intercâmbio da agrobiodiversidade entre agricultores familiares
III) rever a lei de patentes, proibindo o patenteamento de seres vivos
IV) implantar a fitoterapia na rede pública de saúde
d) florestas
I) implementar com máxima urgência a política de criação e consolidação das unidades de conservação da Florestas com Araucárias e Campos Naturais no Paraná e em Santa Catarina
II) criar mecanismos de compensação ambiental para a conservação de florestas nativas
III) desenvolver ampla e intensa campanha educativa sobre adequação ambiental das áreas de produção familiar em relação às áreas de reserva legal e preservação permanente
- Crédito
I) criar um fundo nacional para a agroecologia a ser gestionado por um colegiado paritário entre representação governamental e da sociedade civil
7) Infra-estrutura rural
I) criar um amplo programa de infra-estrutura rural, garantindo à agricultura familiar: estradas, energia elétrica, abastecimento de água e saneamento, rede escolar e de atendimento à saúde, rede de comunicação, moradia e outras instalações.
8) Beneficiamento, Agroindustrialização e Comercialização
I) ampliar, fortalecer e diminuir a burocracia dos programas de compras governamentais de produtos da agricultura familiar agroecologica.
II) Implantar o Programa de Merenda Escolar Ecológica em toda a rede pública de educação.
II) implantar infra-estrutura pública para a comercialização direta dos produtos dos agricultores familiares.
III) garantir preços mínimos e compra dos produtos da agricultura familiar e formação de estoques que garantam a segurança e soberania alimentar da população.
IV) viabilizar os meios para as organizações da agricultura familiar promover programa de formação em gestão de empreendimentos econômicos de beneficiamento, procesamento e comercialização.
V) Manter a possibilidade legal de comercialização pelas Associações.
Reafirmamos, por fim, os compromissos históricos da Jornada de Agroecologia:
- Lutar contra todas as formas de mercantilização da vida, buscando garantir que a terra, a águas, as sementes e toda a Biodiversidade sejam patrimônio da humanidade, a serviço dos povos;
- Conquistar de forma definitiva a manutenção do Paraná como território livre de transgênicos .
- Promover campanhas de informação sobre os malefícios dos agrotóxicos e exigir uma revisão geral da carta de registro dos agrotóxicos e propor legislações de restrição de uso.
- Massificar a organização do povo para a conquista da Reforma Agrária.
- Fortalecer e ampliar a Campanha “Sementes: Patrimônio da Humanidade”, lutando pelo direito de todos os camponeses e camponesas produzirem suas sementes ‘varietais’, preservando e viabilizando a produção própria de sementes como garantia do princípio da soberania alimentar, e impedindo que as empresas transnacionais obtenham o controle oligopolista da produção e da comercialização de sementes;
- Lutar contra a privatização e mercantilização das águas, defendendo o seu valor biológico e sagrado, implementando propostas de proteção e recuperação dos rios e nascentes, denunciando a poluição, a degradação e o desmatamento.
- Promover uma campanha nacional e internacional de descriminalização dos militantes da Jornada de Agroecologia promovida judicialmente pela Monsanto S/A, e conquistar sua condenação pelos crimes que atentam contra a Biodiversidade e a Soberania Nacional, nos termos que propõe o Tribunal Popular e Internacional sobre os Transgênicos (Porto Alegre, 11 de março de 2004).
Convocamos todos para participar do processo de construção coletiva e cotidiana da Jornada de Agroecologia, rumo a seu 5º Encontro em 2006.
Plenária do 4° Encontro da Jornada de Agroecologia,
No outono de Cascavel, Paraná, Brasil,
25 a 28 de maio de 2005.
AOPA, AS-PTA, ASSESOAR, Associações e STR`S, CAPA, CPT, CRESOL/BASER, DESER, FEAB, FETRAF – SUL/CUT, Fórum Centro,Fórum Centro-sul, Fórum Oeste, Fórum Sudoeste, IAF, Instituto Equipe, MAB, MPA, MST, REDE ECOVIDA, RURECO, PJR, MMC, Terra de Direitos.