A violação do direito à alimentação e nutrição no Brasil

Por Sandra Maria Chaves dos Santos

A existência de mais de 33 milhões de brasileiros passando fome é a negação do respeito ao Dhana (direito humano à alimentação e nutrição adequada), associado a privação de outros direitos humanos

Podemos afirmar que a Declaração dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas, no pós-guerra, em 1948, em face da destruição e da destituição de vidas e dignidade, geradas pelas guerras, foi um avanço nos marcos civilizatórios das sociedades democráticas modernas. Desde então afirmava-se: “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.”

Inicialmente tratava-se de um princípio ético-político, o qual alcançou dimensão jurídica por meio do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais – PIDESC, visando tornar obrigatório os compromissos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se o artigo 1 do referido Pacto reconhece para todos o direito a um nível adequado de vida, destacando especificamente o Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA, o artigo 11 vai além ao destacar o dever dos Estados em adotar medidas apropriadas para garantir o direito fundamental de toda a pessoa estar livre da fome. No Brasil, apenas em 2010, o direito humano à alimentação, a partir de uma emenda popular que deu origem à emenda Constitucional n. 64, foi incorporado ao Artigo 6º da Constituição. Portanto, prover, promover, respeitar, garantir esse direito é lei.

Assim, os resultados do 2º Inquérito nacional de insegurança alimentar e covid-19 no Brasil – II Vigisan, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Penssan, divulgados em 08 de junho deste ano, revelam um desrespeito à lei maior do país. Foi evidenciado que 15,5% dos domicílios brasileiros, ou mais de 33 milhões de pessoas, se encontravam entre o final de 2021 e início de 2022 em insegurança alimentar grave – IAG, compatível com fome, por expressar redução quantitativa de alimentos, para além das mudanças de qualidade, atingindo todos os moradores dos domicílios, incluindo crianças. No conjunto os dados denunciam que 58,7% dos brasileiros conviviam com algum grau de insegurança alimentar – IA, isto é, em cada 10 domicílios brasileiros, aproximadamente 6 se encontravam em dificuldades para garantir a alimentação de seus membros.

Infelizmente este resultado não foi uma surpresa. O I Vigisan, conduzido no final de 2020 pela Rede Penssan identificou que 55,2% dos domicílios brasileiros viviam em algum grau de IA e 9,0%, cerca de 19 milhões de pessoas, em IAG.  Em uma primeira leitura poderia ser atribuída à pandemia tal situação, considerando os efetivos impactos sanitários, sociais e econômicos. Os resultados da Pesquisa sobre IA realizada junto a POF – IBGE  2017-18, no entanto, desautorizam essa avaliação unívoca. Àquela época foi identificado que 36,6% dos domicílios estavam convivendo com algum grau de IA, contra 22,9% encontrados na pesquisa junto a PNAD – IBGE, em 2013. Se consideramos a série histórica, portanto, é possível reconhecer que a violação do direito humano à alimentação vinha ganhando contornos dramáticos desde a pesquisa de 2017, agravando-se desde então.

Os resultados da pesquisa Vigisan 2021-22 sobre consumo alimentar evidenciam também que em todo o país mais de 40% das famílias reduziram a aquisição de feijão, arroz, carne, vegetais e frutas no período de referência do estudo. São estes os alimentos que caracterizam a nossa melhor alimentação. Portanto, trata-se de uma violação da dimensão nutricional do direito à alimentação.

A violação do Dhana não atinge igualmente todos os brasileiros, e nem caracteriza um problema isolado. A fome está presente nos lares brasileiros, em todas as regiões do país, mas a situação é mais grave no norte e nordeste, com prevalência de domicílios em IA cerca de 2 vezes maior do que o encontrado na região sudeste e sul. A IA é maior em domicílios rurais, com baixa renda, com pelo menos um desempregado na família, com pessoa de referência do sexo feminino, de raça/cor preta ou parda e baixa escolaridade. Mais um direito violado, a insegurança hídrica, falta de acesso à água para todos os usos, esteve presente em 42,0% dos domicílios em IAG.

Na medida em que os direitos humanos são para todos, toda e qualquer desigualdade é em si uma quebra do pacto democrático. E a existência da fome nos lares brasileiros, com tendência de agravamento do quadro, descumpre o contrato social ético-moral, e como visto, a lei. Cabe à sociedade cobrar e ao Estado responder com políticas públicas emergenciais e estruturantes.

Sobre a autora

Sandra Maria Chaves dos Santos é nutricionista, doutora em administração pública e professora da Escola de Nutrição da UFBA. Vice-coordenadora da Rede Penssan. Atua em ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão na área da saúde coletiva e da segurança alimentar e nutricional e avaliação de políticas públicas de saúde, alimentação e nutrição e SAN

Esse artigo foi originalmente publicado no Nexo Políticas Públicas e Bori.

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